13 de agosto de 2007

Ingmar Bergman, o inexcedível

Com a morte de Ingmar Bergman, fecha-se um ciclo. Ele era o último exemplar da estirpe de mestres que fizeram do cinema um instrumento de análise do ser humano, visto isolada ou coletivamente. Filho de pastor luterano, ele recebeu educação rígida, que incluía punições severas e humilhantes. Talvez por isso se tenha debruçado nos filmes, com tanta insistência, sobre questões existenciais que assombram a todos nós. Com suas neuroses e obsessões, ou seus demônios, como preferia dizer, erigiu uma obra sob todos os aspectos admirável. A arte e a morte foram seus temas mais constantes.

No filme que o tornou mundialmente conhecido, O Sétimo Selo, de 1957, o embate contra a morte se dá cara a cara. Após passar dez anos nas cruzadas, um cavaleiro retorna atormentado por dúvidas metafísicas e recebe a visita da morte. Ele a convida para uma partida de xadrez, na tentativa de ganhar tempo para adquirir algum conhecimento que esclareça suas dúvidas. Enquanto jogam, a Peste Negra faz suas vítimas e a Inquisição queima suas bruxas. O ambiente da Idade Média, fotografado em magnífico claro-escluro por Gunnar Fischer, serve como luva para as questões que angustiam o cavaleiro.

Morangos Silvestres, do mesmo ano, trata da memória, mas também da morte. Às vésperas de receber uma honraria universitária, médico ancião sonha com a própria morte e se põe a fazer um balanço da vida. Prefere seguir de carro, em companhia da nora, para visitar lugares em que viveu, recordando amores e frustrações da juventude e problemas com a esposa já falecida. No trajeto, dá carona a três jovens e a um casal de meia-idade. Neste caso, Bergman buscou inspiração no recurso que John Ford usou em No Tempo das Diligências. Ford colocou sete pessoas de classes sociais diferentes dentro da diligência e explorou seus conflitos. Com propósito semelhante, Bergman pôs no carro sete pessoas de diferentes faixas etárias. Vale notar que Bergman considerava John Ford, conforme declarou, o maior dos cineastas.

No filme O Rosto, de 1958, a trupe de atores ambulantes, que estava presente em O Sétimo Selo, aparece em primeiro plano. E aqui Bergman resolveu aumentar a complexidade da receita, cozinhando no mesmo caldeirão ingredientes nomeáveis por termos antitéticos: ciência e magia, realidade e ilusão, fé e ceticismo.

Em Persona, de 1966, Bergman lida com tema que conhecia bem: a representação. Uma atriz de teatro entra em crise diante do dilema “verdade versus mentira” e resolve ficar muda. Uma jovem enfermeira é contratada para cuidar dela, e ambas vão para uma casa de praia. A enfermeira, que gosta de teatro e cinema e admira os artistas, diz a certa altura: “Acho que poderia me tornar você, se tentasse. Quero dizer, por dentro. E você poderia ser eu”. E, quando descobre que a atriz age como sua analista, muda radicalmente de atitude, invertendo os papéis. As personalidades das duas convergem até se fundirem numa só. O diretor, auxiliado por Sven Nykvist, mostra o processo em imagem: duas metades dos rostos das atrizes são juntadas, formando um novo rosto resultante da fusão das duas “personagens”. Pode-se ver Persona como uma versão psicanalítica do filme A Malvada, em que uma admiradora de famosa atriz de teatro se aproxima de seu ídolo e, aos poucos, maliciosamente, toma o seu lugar.

A morte está no centro de Gritos e Sussurros, de 1972, em que uma solteirona, no leito de morte, recebe cuidados da criada. Suas duas irmãs também estão na mansão para acompanhar seus últimos momentos. As imagens com fundo vermelho-sangue, captadas pelas lentes do mago Sven Nykvist, são fortíssimas. Neste filme, encontra-se uma das falas mais desoladoras sobre a condição humana. É o pastor, ajoelhado junto à falecida, quem diz: “Reze por nós que fomos deixados na escuridão, deixados para trás nesta Terra miserável, com o céu acima de nós, impiedoso e vazio”.

Em Sonata de Outono, de 1978, as relações familiares estão em foco. Uma pianista renomada aceita o convite da filha para passar uns dias em sua casa. Outrora, para se dedicar à música, a mãe não dispensou à filha a atenção que esta gostaria de ter tido. Quando se encontram, o menor pretexto vira estopim para a explosão de uma torrente de rancores e recriminações. Poucas vezes o cinema mostrou um duelo tão formidável de atrizes tão talentosas.

Em seu último filme para o cinema, Fanny e Alexander, de 1982, Bergman realizou uma síntese das relações familiares. Suas neuroses e obsessões pareciam ter-se acomodado. São mostradas três famílias: uma católica, outra protestante e a terceira judia. O foco maior recai sobre o clã católico, cujos membros têm envolvimento com o teatro. Ao longo do filme se delineiam traços culturais que marcam de modo particular os rebentos de cada família. Ninguém duvida que a família protestante representa a do próprio diretor. Mas, desta vez, ele preferiu o escape onírico. E o clima festivo abafa eventuais recriminações.

Bergman foi um artista completo, com pleno domínio de sua arte. No mesmo patamar que ele só se colocam uns poucos. Nomes como John Ford, Federico Fellini, Alfred Hitchcock e Luchino Visconti merecem a honraria. Outros podem entrar, a depender das preferências pessoais, mas o grupo será sempre restrito. Acima dele, porém, não se admite ninguém. Na obra de Bergman está posto, sabe Deus até quando, o limite inexcedível.


(Texto publicado pelo semanário Jornal Opção, de Goiânia, edição de 12 a 18 de agosto de 2007, ligeiramente modificado pelo autor, por questão de espaço. Acesse: http://www.jornalopcao.com.br/)
(Crédito da foto: http://www.fest21.com/)