7 de julho de 2008

Alma de boxeador

Em tempos de multiplicidade de mídias, quem gosta de cinema não precisa angustiar-se, como outrora, por ter perdido um filme que passou na cidade. Hoje em dia, mal o filme saiu de cartaz, o DVD já aporta nas locadoras. Piaf – Um Hino ao Amor (La Môme, 2007), por exemplo, cinebiografia da cantora francesa Édith Piaf, já está disponível para quem o quiser ver ou rever. E, o que é surpreendente, a qualidade de imagem é superior à que foi vista no cinema.

O filme condensa a vida da cantora em uma série de episódios repassados de tensão. Seja por sofrimento, seja por júbilo. A história se inicia em 1959, quando ela desmaia no palco, em Nova York, e se fecha com um dos últimos shows dela no Olympia. Entre a primeira e a última cena, o filme volta ou avança no tempo nada menos que 35 vezes.

Repleta de fatos trágicos e de momentos gloriosos, a vida da cantora é por si mesma melodramática. Talvez por isso os roteiristas tenham se empenhado mais para estabelecer relações entre os eventos em que ela esteve envolvida e, assim, articular um enredo extremamente acronológico. E o diretor Olivier Dahan, que teve participação no roteiro, empregou todos os recursos dramatológicos que conhece para despertar no espectador o máximo de empatia com a personagem.

Se bem que os eventos mostrados guardem correlação com os fatos biográficos, isso não significa que não se tenham tomado liberdades com alguns detalhamentos. Consta, por exemplo, que o memorável show no Olympia, em que ela cantou “Non, je ne regrette rien”, teria ocorrido em 1961, enquanto no filme o ano é 1960; e que nos seus últimos meses ela teria sofrido lapsos de consciência, enquanto no filme ela se mantém lúcida até o final.

O filme é tocante e tem cenas de grande beleza, mesmo quando Piaf não está cantando. Um exemplo é o instante em que ela, criança ainda, admira uma boneca na vitrine e, sem tirar os olhos do brinquedo, vai-se abaixando à medida que a porta da loja se fecha de cima para baixo. Outro exemplo é quando, depois de árdua preparação, ela canta pela primeira vez num music-hall. Não se ouve o que ela canta. Apenas se vêem sua figura iluminada, seus gestos e a reação da platéia, que aos poucos vai-se rendendo ao seu carisma.

Com menos de metro e meio de altura, Piaf era fisicamente frágil, motivo do apelido “la Môme Piaf” (Pequeno Pardal), que lhe deu o seu descobridor. Todavia, a crer-se no filme, ela possuía alma de boxeador. Não por acaso, o grande amor de sua vida foi o pugilista Marcel Cerdan, campeão mundial dos pesos-médios. Aos golpes que a vida lhe infligia ela revidava com a potência do seu canto.

Quando ela solta a voz, até as pedras se emocionam. Na última cena, quando ela canta “Non, je ne regrette rien”, com toda a passionalidade de sua alma indômita e desesperada, o seu canto tem qualquer coisa de mágico que avassala os ouvintes. E era na música que ela encontrava sentido para a sua existência. Por isso, quando alguém lhe pergunta o que faria se não mais pudesse cantar, ela diz: “Eu não viveria”. Após mostrar a sua expiração, o filme termina com a canção que ela adotou como uma espécie de hino, a sugerir que ela continua viva nas canções.

Marion Cotillard, a intérprete de Piaf, não poupou sacrifícios para tornar sua atuação convincente. Raspou as sobrancelhas, refeitas a lápis, e parte do cabelo acima da testa, além de submeter-se a sessões de maquiagem de até cinco horas para as cenas da cantora em seus últimos dias. E o resultado é magistral, quase do nível da atuação de Jamie Foxx como Ray Charles, no filme Ray (2004). O “quase” vai por conta de Foxx ter cantado, o que Marion não fez.

As canções foram tiradas de gravações da própria Piaf, exceto “Padam” e “L’Accordéoniste”, providas pela atriz Jil Aigrot. Mas a dublagem se aproximou da perfeição, a ponto de induzir à suposição de que Marion imitou até a voz dela. De fato, somente quem conhece as sutis alterações fisiológicas causadas pelo esforço de cantar consegue perceber que Marion está dublando.

No cinema, a fotografia do filme apresentava indícios de degradação, com as cores diluídas, o que não seria compatível com a época e boa parte dos ambientes recriados. A título de comparação, tomemos o filme Um Beijo Roubado (2007), de Wong Kar-Wai. Nele, há a nítida preocupação com a desglamorização. Donde os enquadramentos e ângulos inusitados e o uso de lentes de reduzida profundidade de campo (foco curto), combinando com a época focalizada e os ambientes degradados em que as personagens transitam.

Quem assistir a Piaf – Um Hino ao Amor em DVD vai perceber que a iluminação das cenas denota preocupação com um visual glamoroso. As imagens, até certo ponto requintadas, têm cores bem definidas, precisas, em consonância com a época e os ambientes retratados.Diante de tal constatação, os partidários da tese de que filmes são feitos para serem vistos unicamente no cinema que nos perdoem, mas ter a mente aberta a novas mídias é fundamental.

(Foto: http://www.cinema.yahoo.com.br/)
(Texto publicado pelo Jornal Opção, Goiânia, 27 de abril a 3 de maio de 2008. Acesse: http://www.jornalopcao.com.br/)