O CINEMA SEM SAL DA VISÃO POLITICAMENTE CORRETA
Nomadland,
de Chloé Zhao, é o típico “filme de estrada”, que em inglês soa “road movie”. É
o ideal para mostrar belas paisagens. No Brasil, está na moda usar o mesmo título
dado ao filme nos Estados Unidos. Mas, caso interesse a alguém, a palavra “nomadland”
pode ser traduzida por “país dos nômades”.
A personagem principal, Fern, encarnada por Frances
McDormand, é uma viúva sem filhos e com mais de 60 anos. Em 2011, a empresa mineradora
em que ela trabalhava colapsa e a vila de trabalhadores onde morava é
abandonada. Ela pega alguns pertences, enfia-os na sua van e cai na estrada, trabalhando
aqui e ali e parando em acampamentos de nômades.
Quando arranja trabalho, Fern fica algum tempo no mesmo lugar.
Mas, sem que haja um motivo explícito, ela deixa o emprego e volta para a estrada.
Mesmo quando não se trata de trabalho sazonal. Em momento nenhum seu trabalho pode
ser considerado difícil ou extenuante. E ela jamais se desentende com o empregador.
Seu primeiro emprego é num centro de distribuição de
mercadorias da Amazon. O centro é imenso e, da forma como é apresentado, não
motiva ninguém a querer trabalhar lá. Mas Fern trabalha num ritmo tranquilo e
ninguém lhe dá ordens, o que sugere a inexistência de pressão sobre os
funcionários. A experiência foi positiva, porque mais adiante ela diz que pretende
voltar a trabalhar na Amazon. O episódio tem cheiro, portanto, de mechandizing
da Amazon.
Fica evidente que os empregos de Fern não lhe garantem uma
boa remuneração. Ela continua a dormir na van e usando comida enlatada. E
quando a van precisa de reparos, orçados em cerca de 2.300 dólares, ela precisa
recorrer à ajuda da sua irmã.
Muitas pessoas que aparecem no filme são nômades na vida real.
Uma delas é Bob Wells, que representa o chefe de um acampamento no Arizona. O local
é recomendado a Fern por uma colega de trabalho, que lhe mostra imagens e fala
bem de Wells, um homem de barbas brancas. Fern o acha parecido com Papai Noel. Wells
lembra um guru do tempo dos hippies e faz seu discursinho contra o sistema. Critica
a “escravização” das pessoas pelo dólar, compara a economia dos EUA, que
estaria afundando, com o Titanic e considera que sua função, como chefe do
acampamento, é fornecer “salva-vidas”.
Outra nômade de verdade é Swankie, que representa uma mulher
de 75 anos que está com câncer. Fern a ouve contar histórias de sua vida. Swankie
fala de uma cena da natureza que um dia contemplou e diz que depois daquela
experiência poderia ter morrido. Ela tem um sonho: construir uma casa com
material reciclável para viver dentro de uma obra de arte.
Swankie revela seu amor pelas pedras e diz que, quando
morrer, alguém poderia, em sua homenagem, jogar uma pedra no fogo. Noutra passagem
pelo acampamento, após a morte de Swankie, Fern participa de um ritual coletivo
em memória dela. Todos se reúnem em redor de uma fogueira e cada qual lança uma
pedra ao fogo.
Fern faz amizade com Dave (David Strathairn), um sujeito
legal. Quando ela vai retirar caixas da van, ele se oferece para ajudá-la. A
caixa que ele pega se rompe, o conteúdo cai no chão e um prato se quebra. É a
única cena do filme em que alguém sai do sério. Irritada, Fern o manda sair de
perto dela. Depois ela refaz o prato, colando os cacos.
Noutra ocasião, quando ela está fazendo sua refeição dentro
da van, alguém bate na lata do veículo e lhe diz que ali não é permitido estacionar.
Ela se assusta sem que entendamos por quê. Como a câmera permanece dentro da
van, não ficamos sabendo se quem avisa tem uma aparência ameaçadora, nem em que
local a van está estacionada. Talvez seu susto tenha origem psicológica, por
saber que havia estacionado em local impróprio.
Todas as pessoas que Fern conhece são simpáticas, gentis,
amistosas. Não há uma única personagem egoísta, ou mal humorada, ou desonesta. Ninguém
perturba ninguém, seja na estrada, no trabalho ou nos acampamentos. Os nômades
são solidários uns com os outros. Amam a natureza e se preocupam com o meio
ambiente. Parece até que são vocacionados para a santidade. Nem nos contos de
fada os humanos são retratados com tanta condescendência.
Pelo que o filme mostra, o mundo dos nômades existirá para
sempre. Não tem porta de saída. Apenas duas personagens deixam de ser nômades.
Swankie, porque morre, e Dave, que é resgatado pelo filho. Este, antes, não
queria o pai perto dele, mas, quando está prestes a ter um filho, vai buscá-lo para
viver com a família.
Os episódios se sucedem sem que nada surpreenda o
espectador. As pessoas falam de experiências boas e ruins, mas que ficaram no
passado. Não existe conflito. Não havendo conflito, não há drama. Se não tem
drama, não tem clímax. Logo, os episódios se equivalem e podem ser mudados de ordem
sem qualquer prejuízo. Aliás, a cena em que Fern se despede da sua casa, da
empresa fantasma e da vila deserta, que costumeiramente vem no início do filme,
para justificar a decisão da personagem, desta vez é apresentada no final.
Nomadland recebeu uma quantidade considerável de prêmios.
Isto significa que é o tipo de filme que os críticos querem ver. Oxalá haja
sintonia entre o que pensam os críticos e o que querem as pessoas que vão ao
cinema.