Desconstruindo a guerra
Na primeira cena de A Conquista da Honra, (Flags of Our Fathers, 2006), Clint Eastwood dá o tom do filme. A câmera gira espetacularmente em volta de um soldado perdido em terreno arrasado, ouvindo vozes de soldados mortos chamando pelo enfermeiro. Em seguida se esclarece que a imagem é a expressão do pesadelo do enfermeiro John Bradley, sobrevivente da batalha de Iwo Jima. O filme se propõe a desconstruir a guerra, mas usando de toda a parafernália tecnológica que torne a matança fotogênica. Convém ter presente que Steven Spielberg é um dos produtores do filme.
Com um roteiro engenhoso nas mãos, extraído do livro homônimo da dupla James Bradley, filho de John, e Ron Powers, Eastwood articula duas narrativas paralelas. De um lado, os esforços de James para reconstituir a história do pai, de outro, a trajetória de três soldados que participam de uma campanha de arrecadação de fundos. E, intercaladas sabiamente ao longo do filme, cenas da batalha de Iwo Jima, reconstituídas com efeitos visuais e sonoros exuberantes.
Um detalhe do filme, em especial, evidencia o domínio que Eastwood tem da técnica cinematográfica. Quando a tropa desembarca em Iwo Jima, ele mostra as armas japonesas sendo posicionadas, sem que se veja quem as está manejando. Depois ele muda o ângulo da câmera para mostrar, do ponto de vista dos japoneses, os estragos na tropa norte-americana provocados pelas rajadas de metralhadora e pelos disparos de canhão.
Produzido no momento em que os Estados Unidos estão atolados no areal do Iraque, o filme parece ter sido feito justamente para servir como uma ducha de água fria no ânimo do povo norte-americano. Aqui, vê-se um soldado evaporar numa explosão; ali, aparece uma cabeça sem o corpo; acolá, um grupo é vítima de fogo-amigo. Eastwood não se esqueceu nem da locutora da rádio alemã a fazer insinuações sobre a conduta das esposas deixadas sós em casa. Para coroar tudo, a farsa da fabricação de heróis e o cinismo dos vendedores de bônus de guerra.
O foco da trama é uma foto de seis soldados levantando a bandeira norte-americana no ponto mais alto da ilha de Iwo Jima, o monte Suribachi. A foto ganha o mundo na primeira página dos jornais, e, então, os chefes militares têm a idéia de pegar os três sobreviventes do grupo -- René Gagnon, Ira Hayes e John Bradley -- e mover uma campanha nacional de arrecadação de fundos para financiar a guerra. Mas o filme se encarrega de desmontar, gradativamente, toda a fantasia construída em torno da foto e dos supostos heróis que nela aparecem.
Desde o início, o filme coloca a questão da influência das imagens nos destinos de uma guerra. Ao ser entrevistado por James Bradley, um sabichão diz que foi graças à tal foto que os Estados Unidos derrotaram o Japão, assim como a Guerra do Vietnã foi perdida por causa de uma foto -- aquela do vietnamita indefeso tendo a cabeça trespassada por uma bala. Bobagem. É evidente que foto nenhuma tem tanto poder. É delírio de quem vive da manipulação de imagens.
Já que a premissa do filme é que os Estados Unidos derrotaram os japoneses, na II Guerra Mundial, graças à exploração habilidosa de uma foto, Eastwood, espertamente, encaixou uma "explicação" para a derrota no Vietnã, usando o reverso do argumento. Se colar, o governo Bush poderia alegar que o atoleiro no Iraque é decorrente daquelas vexaminosas fotos de Abu Ghraib.
Para resumir a ópera, a personagem do filho do enfermeiro opina: "Herói é algo que nós construímos, é algo de que precisamos". Bela filosofia de botequim. Uma leitura mais atenta do filme pode conduzir a outra conclusão. As crises de consciência de Ira Hayes, que explicam sua bebedeira, decorrem do fato de ele considerar heróis somente os companheiros que morreram na batalha. Ele chega a viajar 2 mil quilômetros só para contar ao pai de um soldado morto que seu filho estava no grupo que levantou a bandeira. E John Bradley vive atormentado, até o instante de sua morte, pela lembrança da perda do amigo Iggy, que evaporou durante a batalha.
Com isso, chega-se a uma das frases-rótulo ("tagline", em inglês) usadas para divulgar o filme nos Estados Unidos: "Every soldier stands beside a hero", traduzida no Brasil para: "Ao lado de cada soldado há um herói". A idéia do filme, deduz-se, é que só são heróis os mortos. O que se contrapõe ao que pensava Samuel Fuller, veterano da II Guerra, que fez sua súmula sobre a guerra no filme Agonia e Glória (1980). Para ele, o único heroísmo na guerra é sobreviver.
Mas A conquista da honra parece tangenciar uma questão interssante. Talvez o problema da imagem do herói esteja na dificuldade de se dar um rosto ao heroísmo que sem dúvida se faz presente na guerra. Uma batalha em que a proporção de mortos foi da ordem de três japoneses para um norte-americano teve certamente seus heróis. E não se pode negar que as imagens têm um papel a cumprir no teatro da guerra. Se o uso da foto da bandeira no monte Suribachi serviu para incentivar a população norte-americana a tirar o escorpião do bolso e entregar os dólares necessários num momento crucial da guerra, foi bem feito. Afinal, na guerra, como no amor, vale tudo.
(Texto publicado pelo semanário Jornal Opção, de Goiânia, edição de 25-02 a 03-03-2007. Acesse: http://www.jornalopcao.com.br/)
(Crédito da foto: http://www.bomdiariopreto.com.br/)
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