A prova da madurez de um cineasta
Quem acompanha a carreira do documentarista goiano Lourival Belém Jr. certamente já percebeu que sua filmografia reflete a busca pelo aperfeiçoamento dos meios de expressão. São já nove filmes desde 1981. E o último, Autonomia, de 2006, é como que o coroamento dessa busca. A narrativa se conduz exclusivamente pela montagem, que articula imagens com depoimentos sem prejuízo da clareza do discurso fílmico.
O filme aborda a luta pela autonomia empreendida por pessoas portadoras de algum tipo de deficiência, que são postas à margem pelo rolo compressor da parcela “saudável” da sociedade. O universo em foco abrange trabalhadores informais, cantores de rua e vítimas de transtornos mentais. A atenção maior vai para o VI Encontro Nacional das Entidades de Usuários e Familiares do “Movimento Nacional da Luta Antimanicomial”, realizado em 2000, em Goiânia.
O melhor de tudo é que o filme não se limita à exposição de depoimentos de especialistas, familiares e portadores de transtornos mentais. Especial ênfase se dá às dificuldades enfrentadas pelos organizadores do evento, para pôr ordem na condução dos trabalhos. Fica evidente que não é nada fácil organizar as participações de pacientes da saúde mental. Mas o esforço vale a pena porque o resultado é gratificante.
Quando o evento perdeu a direção, os holofotes se voltaram para os bastidores, a mostrar o trabalho desenvolvido para repor o carro nos trilhos. E a personagem que realizou a façanha foi chamada ao primeiro plano, dividindo o espaço com as autoridades presentes ao evento. Esse enfoque enriqueceu o filme, dando-lhe a vivacidade de uma reportagem.
A grande nota irônica do filme coube à figura de um sanfoneiro cego que canta “Sou um pobre rico / Sou um rico pobre / De que me adianta / Ter nome de nobre...” enquanto pede esmola. É um verdadeiro achado. O sanfoneiro sintetiza toda a idéia do filme, já que inexiste autonomia sem suporte financeiro.
O recado final, como não podia deixar de ser, ficou por conta de um jovem portador de transtorno mental. Vitorioso a seu modo, na conquista de autonomia, ele se esforça para cantar em inglês. A canção contém um verso que se repete: “I’ll be there”, ou, em tradução livre: “Eu vou estar lá”. E o filme, solidário com ele, acelera os ponteiros de um relógio, a sugerir que o futuro almejado pelo jovem pode estar próximo.
O relógio, aliás, está presente em todo o filme, através de imagens e do tique-taque que pontua a trilha sonora desde os créditos iniciais. O tique-taque pode estar insinuando uma alegórica bomba-relógio, como se todo um “sistema” injusto, que cria levas de marginalizados a cada dia, pudesse explodir a qualquer momento.
A introdução de elementos ficcionais no documentário, em vez de constituir surpresa, é mais usual do que se pensa. E está em consonância com o que pensa um dos criadores do cinema moderno, Jean-Luc Godard, que declarou certa vez mais ou menos o seguinte: “Todo grande filme de ficção tende para o documentário, assim como todo grande documentário tende para a ficção”.
Vê-se com bons olhos que Lourival Belém Jr. tem um ponto de vista sobre o que mostra e dispõe de cabedais para expressá-lo. O filme Autonomia demonstra cabalmente sua madurez como cineasta. Que ele prossiga na linha ascendente, sem nunca se acomodar com as conquistas. Será bom para o cinema e melhor ainda para quem aprecia bons filmes.
(Texto publicado pelo semanário Jornal Opção, de Goiânia, edição de 2 a 8 de dezembro de 2007. Acesse: http://www.jornalopcao.com.br/)
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