Cara ou coroa com o destino
Há diretores que realizam filmes com o único propósito de nos entreter e, vez por outra, conseguem o intento a ponto de sairmos do cinema cantarolando. Outros, de tão sérios, põem o foco todo na “mensagem” e se negam a descer ao nível do divertimento, e não raro nos sensibilizam, deixando-nos alheados, meditativos. Mas há também aqueles que visam à reflexão sem descurar do entretenimento -- estes são imprescindíveis.
Quem já viu algum filme dos irmãos Joel e Ethan Coen provavelmente os associará com a terceira corrente. Eles têm um método de trabalho peculiar: agem em perfeita sintonia em tudo que fazem, e não são gêmeos. Escrevem os roteiros e dirigem e montam os filmes sempre a quatro mãos. Porém, nem sempre assumem os créditos em dupla. E, por questões legais, adotaram o pseudônimo Roderick Jaynes para assinar a montagem. É que o sindicato dos montadores de Hollywood não permite o crédito a dois montadores no mesmo filme.
Seus filmes se voltam para o lado sombrio da vida. Não lhes faltam toques de humor negro nem eventos bizarros, e podem causar grande impacto se o resultado é exitoso. E são quase sempre instigantes, um desafio para a percepção do espectador. Tudo isso vale para o seu último filme, Onde os Fracos Não Têm Vez (No Country for Old Men, 2007), baseado no romance Onde os Velhos Não Têm Vez, de Cormac McCarthy.
O roteiro do filme, que é magnífico, conduz o drama como que juntando as peças de um quebra-cabeça -- ao sabor do acaso. Em 1980, no sul do Texas, o caçador Llewelyn Moss sai num domingo para caçar e encontra uma mala com dois milhões de dólares. Simples assim. O único problema é que o dinheiro fazia parte de uma transação malograda entre traficantes de droga. Daí, graças a outras coincidências, o assassino psicopata Anton Chigurh logo estará no rastro do portador da mala.
O caçador, entretanto, não é presa fácil. Além de conhecedor de armas de fogo, trata-se de veterano da Guerra do Vietnã. A vantagem inicial de Chigurh -- um mecanismo eletrônico que rastreia a mala -- não é suficiente para garantir-lhe a posse do objeto de desejo. Disposto a tudo, ele vai deixando por onde passa um cenário dantesco.
Chigurh nem hesita em despachar para o beleléu aqueles que têm o infortúnio de cruzar seu caminho. Às vezes, surpreendentemente, resolve conceder à vítima uma oportunidade. Da seguinte forma: ele lança uma moeda para o alto e exige que a vítima escolha cara ou coroa. E joga limpo, não mata quem faz a escolha certa.
O psicopata parece ter uma espécie de consciência de ser instrumento do destino, o que lhe dá certo parentesco com seu xará brasileiro Antonio das Mortes, personagem de Glauber Rocha. Isto fica claro no diálogo que trava com o dono de um posto onde abastece o carro. O homem, relutante em escolher cara ou coroa, afirma que não fez aposta nenhuma. Mas Chigurh sentencia: “Apostou, sim. Você tem apostado por toda a sua vida, só não sabia”.
Bem resolvidas visualmente, as situações vividas pelo perseguidor e pelo perseguido dispensam muitas vezes as falas. Estas são importantes, no entanto, para as cenas do veterano xerife Ed Tom Bell, que narra a história e medita sobre as mudanças no comportamento dos criminosos. Filho e neto de xerifes, ele estranha a brutalidade crescente dos crimes e se recorda de xerifes que nem usavam arma. Impotente para elucidar os crimes de sua jurisdição, só lhe resta refletir sobre os horrores que observa nas investigações que realiza.
É crucial a cena em que Bell visita um amigo dos velhos tempos, ex-auxiliar de seu avô xerife, a quem admite suas dificuldades com os novos tempos. O ancião, paraplégico por ação de um fora-da-lei, vive em estado de abandono. Bell expõe-lhe o seu desconforto com as atrocidades que tem visto, considerando-as próprias dos tempos correntes. O ancião, que tem outra visão dos fatos, entende que não existe nada de novo. E, após relatar um episódio ocorrido em 1909, dispara: “A violência é uma característica da nossa gente”.
O desfecho do filme, um tanto desconcertante, é coerente com toda a história. Llewelyn não consegue escapar com o dinheiro nem Chigurh põe a mão no butim. O primeiro, quando já se imagina a salvo, cai numa armadilha fatal, de origem inesperada; e o segundo, ao dirigir por uma rua deserta, recebe o golpe súbito de um carro que avança o sinal. Ferido gravemente e pedestre, Chigurh será presa fácil para a polícia, cuja sirene já se faz ouvir. Assim, caçador e caçado terminam como perdedores no cara ou coroa com o destino.
Um detalhe que chama a atenção é o penteado de Javier Bardem, o ator que interpreta Chigurh. Bizarro para os padrões de hoje, o estilo era usual na década de 1970. Ironicamente, os Coen tiraram o modelo de uma foto de 1979, de um dono de bordel.
Conta-se que Bardem recusou a princípio o papel -- que lhe valeu afinal o Oscar --, alegando não saber dirigir, não falar bem o inglês e ter ódio a violência. Mas acabou se rendendo quando recebeu dos irmãos Coen a seguinte explicação: “É por isso que nós o convidamos”. Isto não parece também um caso de sorte tirada no cara ou coroa com o destino?
(Foto: http://www.canais.digi.com.br/)
(Texto publicado pelo Jornal Opção, Goiânia, 9 a 15 de março de 2008. Acesse: http://www.jornalopcao.com.br/)
Nenhum comentário:
Postar um comentário