Na última sexta-feira, 6, tivemos a honra de receber em casa alguns bons amigos: João Carlos Taveira, Erinaldo, Robson Corrêa de Araújo avec Da. Maria José. Reunir amigos é sempre uma alegria; depois da família, eles são a maior dádiva da vida. E que tal assistir a um filme? Para um cinéfilo, qualquer reunião fica mais interessante com um filme divertido.
Diante da dificuldade de escolha, já que o filme deveria interessar a todos, sem privilegiar o gosto de ninguém em particular, alguém sugeriu um faroeste. Ora, faroeste lembra John Ford, o mestre do gênero e, por extensão, do próprio cinema. Então, era melhor que fosse um faroeste de John Ford. Mas o maior cineasta norte-americano realizou várias obras capitais do gênero, inclusive a chamada trilogia da cavalaria. E foi Da. Maria José quem decidiu a questão, ao propor o primeiro filme da trilogia. Assim, Sangue de Herói (1948) foi posto a rodar.
O título que o filme recebeu no Brasil, à época de seu lançamento nos cinemas, era Sangue de heróis. No plural. Sem fazer justiça à história narrada nem guardar a menor relação com o título original, além de prometer heróis a mancheias, o que passa longe do propósito do filme. Por isso, a Warner Bros. fez bem ao eliminar o plural do título brasileiro, quando lançou o DVD.
O título original é Fort Apache, que dá uma idéia precisa do conteúdo do filme. Pois se trata mesmo de um forte, um posto avançado do exército norte-americano, no tempo da chamada Guerra dos Índios. E a palavra "apache" remete ao Velho Oeste e à nação indígena com esse nome, que está no centro da atenção da cavalaria ao longo de todo o filme. Mas heroísmo, decididamente, não é o tema do filme.
John Ford escolheu uma história perfeita para o seu propósito. Embora sem a menor referência à batalha de Little Big Horn, o filme indubitavelmente foi inspirado na ação do general Custer no fatídico episódio, contra os índios liderados por Touro Sentado e Cavalo Louco. Tal como o tenente-coronel Thursday, vivido no filme por Henry Fonda, Custer deve ter sido arrogante e inconseqüente ao atacar a aldeia dos índios sioux e cheyennes, nas proximidades do rio Little Big Horn, no território de Montana, naquele 25 de junho de 1876. Do destacamento comandado por Custer -- 211 militares e três civis -- ninguém escapou. Ou melhor: sobreviveu apenas o cavalo Comanche, que pertencia ao capitão Miles Keogh.
No filme, o cenário é o Arizona, representado na paisagem do Monument Valley, sempre do lado de Utah, como o diretor preferia. Em vez de sioux e cheyennes, temos os apaches, que eram da região. No lugar de Touro Sentado e Cavalo Louco, os líderes apaches chiricahua Cochise e Gerônimo. Diretor pra lá de talentoso, Ford usa de todos os recursos da mise-en-scène para criticar a conduta do tenente-coronel Thursday, sem perder a elegância e o senso de espetáculo. Ao mesmo tempo, através do capitão York, interpretado por John Wayne, faz a defesa dos índios, além de mostrar Cochise com a maior dignidade e cheio de razão, fazendo o primeiro pronunciamento em defesa dos interesses indígenas da história de Hollywood.
Do começo ao fim, Sangue de Herói não poupa a mentalidade beligerante contra os índios, que reinava no exército ianque, e defende intransigentemente os interesses indígenas, de forma pouco explícita, é verdade, mas sistemática, como nenhum outro filme o fez, em qualquer tempo. Tudo deságua na indiscutível vitória dos índios, tal qual na batalha de Little Big Horn. John Ford não faz concessões.
O filme não traz o registro, no seu início, como era usual nos faroestes, do ano em que se passa a história. A principal razão, certamente, se deve ao fato de o episódio retratado ser absolutamente fictício, não havendo razão para atribuir-lhe a chancela de evento histórico. Trata-se, na realidade, de uma metáfora alusiva à batalha de Little Big Horn, que, por sua vez, não poderia ser filmada com a visão crítica que Ford imprimiu à história, por causa das implicações políticas óbvias.
Entretanto, não seria difícil enquadrar o conteúdo de Sangue de Herói no contexto da Guerra dos Índios. Vejamos. No filme, Cochise está fugido da reserva e refugiado em território mexicano com sua gente. Como se sabe, ele foi aprisionado em 1871 e levado para a reserva de Tularosa, no Novo México, de onde fugiu no início de 1872. Depois da negociação de um novo tratado, mais favorável aos apaches, ele se rendeu e foi recolhido a uma reserva no Arizona, no final de 1872, onde permaneceu até sua morte, em 1874. Portanto, sem sombra de dúvida, a história do filme pode ser situada no ano de 1872.
A sessão foi muito divertida, com risadas sem conta, que Ford era mestre também em provocar o riso da platéia. Houve até quem confessasse a vontade de aplaudir, ao fim do filme. Na despedida, amigos manifestaram o desejo de que a sessão venha a ser a primeira de uma série. E os dois outros filmes da trilogia da cavalaria são um convite em aberto para que esse desejo se concretize. Amizade e cinema combinam tão bem como queijo e goiabada.
(Na imagem, três sargentos do Forte Apache; a partir da esquerda: Mulcahy (Victor McLaglen), Schattuck (Jack Penncik) e Quincannon (Dick Foran)).
(Crédito da foto: http://www.videodetective.com/)